O texto seguinte pode conter spoilers do livro “Lisboa no Ano 2000”
De fácil ou difícil leitura, a Ficção Científica em Portugal para mim tem um nome: João Barreiros. E foi ele que me “impingiu” este Lisboa no Ano 2000, uma antologia organizada pelo próprio. A promessa é ambiciosa. Mostrar a visão que os “antigos” tinham sobre o futuro da nossa Lisboa, um futuro que nunca existiu, uma Lisboa monárquica dominada pelas megadônticas Torres Tesla que conspiram e envenenam os seus últimos resquícios de Humanidade. Dirigíveis a planarem sobre a cidade e traços evidentes de uma linhagem germânica que não capitulou na Segunda Guerra Mundial…
Imaginas uma Lisboa subjugada pelos poderes da energia? Monocarris sobre as principais avenidas da capital? Mortos sugadores de energia? Freiras-ninja e freiras exorcistas? Enguias elétricas no Tejo? Peixes sem cabeça, bonecas que ganham vida, e autómatos para dar e vender? Então prepara-te, porque esta antologia, mais do que um conjunto de contos, eles oferecem-te tudo isto e muito mais.
SINOPSE:
Bem-vindos à maior cidade da Europa livre, bem longe do opressivo império germânico. Deslumbrem-se com a mais famosa das jóias do Ocidente! A cidade estende-se a perder de vista. O ar vibra com a melodia incansável da electricidade.
Deixem-se fascinar por este lugar único, onde as luzes nunca se apagam, seja de noite, seja de dia. Aqui a energia eléctrica chega a todos os lares providenciada pelas fabulosas Torres Tesla.
Nuvens de zepelins sobem e descem com as carapaças a brilhar ao sol. Monocarris zumbem por todo o lado a incríveis velocidades de mais de cem quilómetros à hora. O ar freme com o estímulo revigorante da electricidade residual. Bem-vindos ao século XX!
Lisboa no Ano 2000 recria uma Lisboa que nunca existiu. Uma Lisboa tal como era imaginada, há cem anos, por escritores, jornalistas, cientistas e pensadores. Mergulhar nesta Lisboa é mergulhar numa utopia que se perdeu na nossa memória colectiva.
OPINIÃO:
Não é uma obra perfeita. Não o é. Nem algo muito entusiasmante e vibrante. Também não. Mas ter um livro destes na minha estante é um privilégio, e por isso só posso agradecer ao João a recomendação e claro, o autógrafo. Este livro é um claro sinal que a Ficção Científica em Portugal não está morta e ainda há muito boa gente com grande vontade e espírito de iniciativa em alimentar este género tão mal-amado no nosso país. Em comparação com a antologia Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa, que li anteriormente, esta Lisboa no Ano 2000 ganha no sentido que não consigo encontrar um só conto que seja mau, o que encontrei na referida antologia. Mas perde na falta de diversidade e na quase repetição dos temas.
Apesar de, na maioria dos contos, a escrita ser significativamente boa – o que é sempre gratificante para quem lê -, houve casos em que ela se tornou maçuda. Todos os contos se passam no mesmo mundo, na mesma visão desse mundo distópico da nossa Lisboa, com várias inovações, sim… mas a base era a mesma. Concluo que era esse o objetivo e que todos os escritores tiveram que se reger pela mesma premissa, uma série de tópicos a seguir para que todas as histórias se passassem nessa mesma visão de Lisboa, ainda assim em certos casos tornou-se cansativo ler discrições semelhantes dos mesmos “monumentos”. Este, no entanto, não passa de um pequeno apontamento a registar numa obra que me agradou e que não sei se faria melhor.
O livro começou com um Prólogo que serve como uma introdução original não só à visão de Barreiros como também aos escritores que fazem parte da antologia. Seguiu-se o primeiro conto, O Turno da Noite. É o primeiro conto de João Barreiros na antologia, uma história muito na linha de outro conto que li dele: A Mina do Deus Morto. No entanto, ao contrário desse conto, este não me agradou. A nível de escrita, nada a apontar, mas a história não me atraiu por aí além e o final soou-me mais do que previsível, sem sal. Mas logo depois dei o salto para Venha a Mim o Nosso Reino de Ricardo Correia. Aí somos apresentados pela primeira vez a sério a esta Lisboa fantástica. Com uma escrita extremamente gráfica e rápida, confesso que me maravilhei com as freiras-ninja e o Canhão do Raio da Morte que saiu da estátua de Nikola Tesla. Não houve praticamente desenvolvimento de nenhum conceito nem personagem e soube a pouco. Mas provavelmente ainda bem que assim foi.
Os Filhos do Fogo de Jorge Palinhos foi o conto que se seguiu. E que conto. Gostei imenso, do princípio ao fim. Uma história bem estruturada. Uma escrita atrativa. Palinhos introduziu-nos numa história de terror científico sobre um poeta que se quis reproduzir e faz-nos pensar sobre a multiplicidade do fogo e sobre a consciência dos nossos inúmeros “eus” interiores. Dedos, de AMP Rodriguez, pecou por ser algo confuso, mas não só nos ofereceu uma narrativa humorística e diálogos com pronúncia do Norte, quanto nos presenteou com uma aura de mistério e terror. Um assassínio numa fábrica? Autómatos a fazerem tapetes de Arraiolos? Serão eles confiáveis? Só fica aquém dos anteriores pelo final pouco consistente e abrupto.
O conto seguinte, As Duas Caras de António, de Carlos Silva, fala-nos sobre espionagem e um personagem que faz jogo duplo com os seus aliados alemães. A escrita é muito boa, a história irrepreensível, mas ainda assim foi um conto que passou despercebido nesta antologia. Temos depois o primeiro conto que li da autora Ana C. Nunes, Electrodependência. Esta autora também é ilustradora de banda desenhada e posso garantir que a sua escrita é igualmente gráfica. Gostei muito. O protagonista é um eletrokinético que se usa dos seus poderes sobrenaturais para vender a sua droga, uma droga a que só os ricos têm direito. A droga da electricidade. É um conto rico em detalhes visuais que me agradaram bastante.
Nanoamour de Ricardo Cruz Ortigão é mais um conto que cumpre mas que passa despercebido. É uma daquelas histórias em que o Cupido resolve pregar partidas aos chico-espertos, e o nosso protagonista paga pela sua presunção. O feitiço vira-se contra o feiticeiro. Um conto com um final bom, apenas, porque o caminho até lá chegar foi algo insonso. O conto A Energia das Almas de João Ventura foi ainda menos significante. Apesar de a ideia de se transformar a energia das almas em energia elétrica ser interessante, o conto não o é e ainda conseguiu matar um príncipe pelo caminho. Fuga, de Joel Puga, é um conto que me toca pessoalmente, porque fala de um escritor que não pode dar asas à sua imaginação e cumprir os seus sonhos, e isto porque no mundo em que vive os escritores foram substituídos por máquinas. Um conto que nos faz pensar e que gostei, apesar de não ser, efetivamente, algo de grande qualidade narrativa.
Somos então apresentados ao segundo conto de João Barreiros na antologia. Tratado das Paixões Mecânicas não foi apaixonante. Páginas atrás de páginas recheadas de conceitos técnicos, contando-nos uma história confusa e sem percebermos o que realmente ali se passa. Algum tédio. E então, as páginas finais revelam-nos tudo. Toda a tramóia que a mente do João Barreiros andava a conjeturar. Não posso negar que é um conto de grande qualidade, com um final genial, mas o sabor é agridoce. Menos 50 quilos de descrição teria-o tornado quase perfeito. Seja como for o conto tem grande mérito e faço uma vénia ao autor. De Telmo Marçal temos O Obus de Newton. A ideia é interessante, mas o autor divagou imenso e a sensação que fiquei foi que o autor teve sempre a necessidade de mostrar a sua erudição literária, o que é sempre cansativo e desmotivante para o leitor. Algumas saídas irónicas também soaram forçadas. Gostei dos índios que afinal não o eram. No conto Ex-Machina de Michael Silva somos presenteados com boas cenas de ação e um ritmo acelerado. Gostei dos dois personagens principais, mas o conto não traz nada de novo e vale pela ação.
A Rainha de Pedro Vicente Pedroso é um conto muito bom, sobre um homem que se passeia no Tejo com a sua embarcação. Ao encontrar duas crianças órfãs, usa-as para alcançar o seu objetivo pessoal: caçar a maior das enguias elétricas conhecida como a Rainha. O final é brutal e surpreendente. Em Taxidermia de Guilherme Trindade, somos surpreendidos com uma prosa cativante sobre um empalhador de animais que é contratado para revestir os autómatos que iriam colocar no Jardim Zoológico em substituição dos animais que estavam a morrer por conta dos resíduos eléctricos. Uma história muito bem construída e um conto de grande qualidade. O cavalo com a bomba de oxigénio foi um pormenor excelente, apesar disso confesso que não gostei do twist final. Quem Semeia no Tejo, eu não sei, mas Pedro G. P. Martins conduziu-nos num conto com um início um pouco lento sobre um médico que quer encontrar uma explicação real para a doença do Príncipe e dá de caras com um fantasma. Gostei do conto e do final, apesar de ser das histórias menos bem construídas da antologia.
O conto Coincidências de Pedro Afonso é bastante interessante. Gostei do desenvolvimento da narrativa, do enquadramento político, do ar pulp e das personagens, mas o final devia ser mais satisfatório. Terminamos então o livro com Chamem-nos Legião, o terceiro conto de Barreiros e é nele que percebemos enfim o nome atribuído aos três contos: O Que Escondem os Abismos. É nele que eu percebi a dedicatória no meu livro: “uma exorcista com uma vara electromagnética”. João, uma freira que come fadas ao pequeno almoço? Que imaginação. Desenvolvimento, enquadramento, acção, descrição e termos técnicos muito bons, duas histórias paralelas que se entrelaçam, sempre com a escrita irónica com que o autor já nos habituou. Termina então com o Epílogo que vem complementar o Prólogo inicial. É o final excelente para uma antologia que cumpriu o que prometera. Apesar de algumas falhas e incongruências, penso que a maioria dos contos manteve o mesmo nível, pelo que me é difícil escolher o preferido. Chamem-nos Legião, Electrodependência, Os Filhos do Fogo e A Rainha foram os que mais me surpreenderam, e daí a minha predilecção. É um livro que deixa bem claro que se escreve bem em Portugal e que temos muitos talentos em todos os géneros. Atenção amigos, a FC portuguesa não morreu.
Avaliação: 7/10
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