Para além dos muros que cercavam o Círculo, erguiam-se os pináculos e domos pintados de Unta. Ela ansiava pelas ruas sombreadas entre eles, ansiava pela vida mimada de há uma semana, com Sebry a rosnar-lhe ordens ríspidas enquanto ela guiava a sua égua preferida ao seu ritmo.
O texto seguinte aborda o livro “Os Portões da Casa dos Mortos”, segundo volume da série Saga do Império Malazano
Lançada em Portugal pela Edições Saída de Emergência, a Saga do Império Malazano é considerada uma das melhores séries de fantasia épica da atualidade. Escrita pelo canadiano Steven Erikson, arqueólogo e antropólogo de profissão, é comummente descrita como uma saga complexa, de difícil compreensão para quem está acostumado a histórias entregues de bandeja que envolvam uma trama restrita de personagens.
Não obstante o caos para o qual o leitor é atirado de cabeça, a Saga do Império Malazano traz tudo o que um amante de fantasia adulta mais pode desejar. Com tradução de Carol Chiovatto e adaptação para pt-pt de Susana Clara, Os Portões da Casa dos Mortos, o segundo volume, foi dividido em Portugal em dois livros, sendo que este compreende as primeiras 416 páginas da publicação original.
Eu realmente amei Jardins da Lua. O primeiro volume, escrito para o screenplay de um filme que nunca aconteceu, só viu a continuação ser escrita oito anos depois, e pela chuva de opiniões que li na internet, este Os Portões da Casa dos Mortos meteria o primeiro livro a um canto, em qualidade. Mas, repito-me, eu amei Jardins da Lua. Imaginam o meu estado de hype? A verdade é que não gostei tanto deste livro como do primeiro, MAS isso não significa que seja inferior. Não o é.
Lamento que o livro tenha sido dividido, não só prejudicando a estética do mesmo como a experiência de leitura pode ter sido prejudicada pela divisão. A imagem de Anomander Rake na capa, personagem que não aparece neste volume, também é ainda um mistério para mim. Opções editoriais que não roubam a essência a Os Portões da Casa dos Mortos.

Com vários pontos de vista e uma gama diversa de personagens, acabei por não me sentir ligado a nenhum deles. Talvez tenha sentido a falta de um Whiskeyjack ou de um Ganoes Paran, da irreverência de um Hairlock e dos mistérios de Oponn, mas a verdade é que faltou aqui qualquer coisa.
Fica a sensação de que o livro é perfeito, mas que não me disse absolutamente nada. Não mexeu no meu interior. Não me fez sentir comiseração, amor ou ódio. Mas apesar de não me sentir verdadeiramente envolvido com nenhum personagem, não houve algum de que não tenha gostado. Todos eles foram bem construídos, originais, cheios de matizes e de traços verosímeis.

O mundo de Erikson é incrível. A escrita de Erikson é maravilhosa. Os personagens de Erikson do mais badass que podes encontrar. E o ritmo? Acelerado do primeiro ao último instante, com cenas de batalha, desolação, massacres e perseguições de uma ponta à outra… Se considerarmos que só li a primeira metade do volume original, acredito que ainda não cheguei ao melhor deste livro.
“Um catálogo de raças e animais incrível, um mundo original, refrescante e bem conseguido, personagens bem carismáticos.”
A aura também é bem mais sombria em Os Portões da Casa dos Mortos. Se o primeiro volume foi passado no continente de Genabackis, este ocorre nas Sete Cidades, em volta de uma profecia terrível e de um evento conhecido como o Furacão. Se quiseres saber algo da premissa base deste livro, segue viagem, mas se preferires começar este volume às cegas, aconselho-te a parares por aqui a leitura da recensão.
Arrastada como escrava para as Minas de Otaratal, um minério conhecido pelas propriedades de obliteração de magia, Felisin torna-se dependente da droga chamada durhang e cria relações profundas e pouco lineares com um velho tatuado e sem mãos, o antigo historiador e sacerdote do deus javali Fener, Heboric Toque Leve, e com um misterioso ladrão chamado Baudin. Felisin é arrastada para um turbilhão de sobrevivência e desolação em que não poderá confiar em ninguém.
A travessia do labirinto Kurald Emurlahn por parte de Felisin e os seus companheiros no navio Ripath foi dos melhores momentos do livro, com as primeiras referências a outras raças de tiste para além dos andii.
“Mais credível e menos fantasioso que o primeiro volume, acompanhamos, através de uma escrita madura e riquíssima em vocabulário, uma história nebulosa com um objetivo final claro desde os primeiros momentos.”
Enquanto Violinista se sente dividido entre lealdades e sentimentos pessoais, guiando o jovem casal numa falsa demanda, Kalam, o antigo assassino da Garra, faz aquilo em que é melhor. O que inclui fazer chegar um determinado livro a uma profetisa. No Sagrado Deserto Raraku, a vidente Sha’ik e os seus seguidores conjuram o Furacão, evento que a crença do Apocalipse diz ser o motor de uma rebelião cujo objetivo final é a queda da Imperatriz Laseen.
Violinista, que havia sido pouco mais que um figurante no primeiro volume, foi o meu preferido. Neste livro ganhou protagonismo e ponto de vista, e todos os segmentos de capítulo que protagonizou foram fantásticos.
“Steven Erikson faz malabarismo com várias tramas em simultâneo, e a maioria dos personagens não chega a cruzar-se uns com os outros.”
O trell Mappo e o jhag Icarium são um inusitado par (best friends forever) que, entre confrontos com os ameaçadores d’ivers e soletakens, terão de lidar com o enigmático sumo-sacerdote Iskaral Pust, dedicado à Casa da Sombra. Trono Sombrio e Cotillion, os famigerados Ascendentes (homens que se tornaram deuses) continuam a fazer das suas, embora nunca apareçam diretamente na história. Infelizmente fui spoilado sobre a verdadeira identidade deles até antes de ler Jardins da Lua, por isso não fui minimamente surpreendido.
Coltaine, Duiker, o mago Kulp e Felisin foram excelentes adições à trama, cada um a seu jeito. Os seus motivos, as suas lutas, aquilo por que se bateram. E a pequena participação de um personagem que será o grande protagonista da série também deixou-me com a pulga atrás da orelha. Steven Erikson faz malabarismo com várias tramas em simultâneo, e a maioria dos personagens não chega a cruzar-se uns com os outros.
Em suma, gostei muito. Um catálogo de raças e animais incrível, um mundo original, refrescante e bem conseguido, personagens bem carismáticos. A atmosfera é deprimente e catastrófica, mas é isso que gostamos mesmo num livro deste género, certo? Fico com a sensação de que este livro tinha tudo para entrar no meu lote de preferidos. Não entrou, mas a segunda metade provavelmente fará desta uma das melhores publicações de ficção fantástica no nosso país.
Este livro foi cedido em parceria com a editora Saída de Emergência.
Avaliação: 8/10
Saga do Império Malazano (Saída de Emergência):
#2 Os Portões da Casa dos Mortos
#5 Capustan
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