Smith estivera consciente da visita dos médicos mas grocara imediatamente que as suas intenções eram benignas; não era necessário forçar a maior parte de si a voltar de onde se encontrava.
O TEXTO SEGUINTE ABORDA O PRIMEIRO E SEGUNDO VOLUMES DO LIVRO UM ESTRANHO NUMA TERRA ESTRANHA
Nome de vulto da ficção científica, Robert Anson Heinlein é comparado a autores como Isaac Asimov e Arthur C. Clarke na importância que tiveram para o alavancar do género. Vencedor de quatro Prémios Hugo, Heinlein é uma referência do género que o fez chegar a Grande Mestre dos Escritores de Ficção Científica, o primeiro, em 1974. As suas obras mais famosas são Starship Troopers (1959), The Moon is a Harsh Mistress (1967) e Stranger in a Strange Land (1961). Este último venceu o Hugo em 62 de Melhor Romance de Ficção Científica.
A edição de 2018 de Um Estranho Numa Terra Estranha, clássico intemporal de Robert A. Heinlein, foi dividida em dois volumes pela Saída de Emergência, uma vez que corresponde à versão original do livro de ficção científica (220 mil palavras), completa e sem cortes, com nota introdutória de Safaa Dib, prefácio da viúva, Virginia Heinlein, e tradução de Jorge Candeias. O primeiro volume inclui 352 páginas e o segundo 336. Uma vez que li os dois livros de uma assentada e se trata de uma obra única, não vi razão para publicar opinião em separado.

É uma honra ler um livro tão aclamado e elogiado na sua versão original, que a viúva de Heinlein conseguiu publicar apenas em 1991. Um Estranho Numa Terra Estranha nasceu na era de ouro da fantasia e da ficção científica, o início dos anos 60, em que estes sub-géneros ganharam uma visibilidade e um impacto até então nunca vistos. Bastante polémico e pouco consensual, Robert A. Heinlein escreveu uma obra que nos parece actual desde o momento em que lhe pegamos.
“Apesar de estar bem escrito e organizado, ele quase tenta forçar-nos a acreditar numa nova religião, ao mesmo tempo que transforma o protagonista num Messias.”
É um livro moderno, avançado para o seu tempo, que traz a lume uma série de questões pertinentes sobre o nosso quotidiano, sobre a forma como vivemos e como nos portamos diante das circunstâncias, diante dos preconceitos e das nossas crenças. Extremamente reflexivo e profundo de uma ponta à outra, é também um livro repleto de personagens interessantes e cheias de conteúdo. Mas apesar de ser uma obra de mérito, tenho de confessar que não é livro para mim.

A primeira expedição humana a Marte acabou numa tragédia. Não houve sobreviventes a bordo da Envoy. Vinte e cinco anos depois, uma segunda expedição descobre algo incrível. Houve um sobrevivente, nascido da relação entre dois membros da expedição. Valentine Michael Smith foi resgatado e criado por marcianos, pelo que nunca antes vira um terrestre. Ao regressar à Terra, conhece pela primeira vez o seu povo e os seus hábitos.
Pouco a pouco, Michael trilha um percurso de aprendizagem sobre a natureza humana, os seus costumes e idiossincrasias, ao mesmo tempo que mostra também a sua cultura e as características únicas dos marcianos aos demais. Ele tem uma grande importância para o governo e para as grandes organizações terrestres, uma vez que pode servir como elo de comunicação entre humanos e marcianos durante a colonização. Para além disso, é herdeiro dos seus falecidos pais e dos outros membros da primeira expedição falecidos, o que faz dele muito rico.

Aproveitando-se do seu desconhecimento e ingenuidade, muitos tentarão aproveitar-se dele para ganhar poder, influência e dinheiro. Completamente alheio às intenções dos que o circundam, Valentine Michael Smith terá ainda de se adaptar às características estranhas dos terrestres. Em Marte, não existem mulheres, sendo a atividade sexual um ato puramente mecânico com vista à reprodução, realizado entre os marcianos adultos e as ninfas, um estado primário de existência.
“Uma obra de qualidade dos anos 60, que como não agradou a mim, não agradará a todos.“
A morte é outra das assunções que os marcianos encaram de forma diversa. Eles escolhem quando morrer, para assim se desintegrarem, optando também por fazerem os seus familiares e amigos comerem o cadáver como forma de celebrar a vida. De forma gradual, Michael obriga aqueles que o tentam proteger a compreender a sua forma de vida e, ao invés de se adaptar, obriga o mundo que o rodeia a adaptar-se àquilo que ele é e ao mundo de onde veio.
Personagens riquíssimas ataviam a obra, como Gillian Boardman (Jill), a enfermeira do hospital que acolhe Michael e por quem nutre desde logo uma afeição especial, Ben Caxton, eterno pretendente de Jill e jornalista de investigação que empreende uma verdadeira jornada para o proteger, Jubal Harshaw, um escritor popular que se torna uma espécie de mentor e líder espiritual de Michael na Terra e os empregados deste, Anne, Miriam, Dorcas, Larry e Duke, que de uma forma ou de outra ficam conectados emocionalmente a Michael.

Destaque ainda para Pat, uma artista circense coberta de tatuagens que fica intimamente ligada ao protagonista, o muçulmano Dr. Mahmoud, que se converte à teologia marciana, ou Gil Berquist, assistente do pouco ortodoxo secretário Douglas, líder da Federação dos Estados Livres. Várias expressões tornam-se importantes na narrativa para compreender o modo de estar do protagonista. Uma delas é o verbo grocar, que significa entender na plenitude algum assunto ou experiência, a outra é irmão de água, que corresponde ao estado de filiação de Michael para os restantes personagens que se tornam seus amigos após a partilha de um copo de água.
Um Estranho Numa Terra Estranha é um importante livro que nos convida a refletir sobre cultura, religião, filosofia e acima de tudo sobre as nossas próprias certezas. A primeira metade foi mais leve, focada na adaptação de Mike ao planeta Terra e uma quase corrida contra o tempo para o proteger dos interesses corporativos, mas apesar de me agradar mais em termos narrativos, pareceu meio vazia em conteúdo para aquilo que esperava desta obra.

Na segunda metade percebi o real interesse do livro. Bastante mais imersiva e profunda, ela é igualmente parca em ação mas debate temas fortes e polémicos. É acima de tudo neste segundo volume que vemos discutidos temas religiosos e, sinceramente, foi o que menos gostei no livro. Apesar de estar bem escrito e organizado, ele quase tenta forçar-nos a acreditar numa nova religião, ao mesmo tempo que transforma o protagonista num Messias.
Valentine Michael Smith é um Tarzan na primeira metade e um Jesus Cristo na segunda. E é terrivelmente insosso nas duas. O livro é relevante, intenso e de leitura fácil, mas não consegui comprar ideias, gostar dos credos marcianos nem gostar da história em si. De qualquer forma, não deixa de ser um livro bem escrito e extremamente importante para a ficção científica. Uma obra de qualidade dos anos 60, que como não agradou a mim, não agradará a todos.
Avaliação: 4/10
3 comentários em “Estive a Ler: Um Estranho Numa Terra Estranha #1 e #2”