Certa vez, golpeou-lhe a cara com uma fivela, talvez esperando expulsar o diabo que nela via. Não funcionou. Stanton manteve os dentes todos e o nariz sarou. A cicatriz na testa esbateu-se. O diabo, tanto quanto sabia, permaneceu.
O TEXTO SEGUINTE ABORDA O LIVRO A FOME
Primeira recensão do ano… E que tal A Fome? Alma Katsu é uma escritora americana de ficção para adultos, cujo trabalho mais conhecido é The Taker, um romance literário de fantasia histórica publicado em 2011 e reconhecido como um dos dez melhores romances de estreia do mesmo ano pela Associação Americana de Bibliotecas. A sua obra foi traduzida em mais de uma dúzia de idiomas.
Paralelamente, Katsu manteve uma carreira de vinte e nove anos no governo federal dos EUA, trabalhando em várias posições relacionadas com inteligência e política externa, com especial destaque na área tecnológica. Desde 2012, trabalha como analista sénior de políticas para a RAND Corporation. The Hunger foi publicado pela Saída de Emergência em 2018, num volume com 320 páginas e tradução de Renato Carreira.

2019 começa no NDZ com o livro A Fome de Alma Katsu, a minha leitura de Natal. É um romance de ficção histórica que segue muito a estratégia que Dan Simmons utilizou em The Terror, partir de um misterioso desastre da História para construir uma narrativa repleta de nuances sobrenaturais. Assim como no livro de Simmons, A Fome acompanha um grupo perseguido por um mal indizível, quase lovecraftiano, e os membros dessa composição vão morrendo a pouco e pouco. De forma brutal.
“Nota-se um grande trabalho de pesquisa por parte da autora, mas acho que a sua mais-valia está nas liberdades narrativas a que ela se permitiu.“
Até na abordagem ao canibalismo, à corrupção, aos limites da razão e à selvajaria do homem nas condições mais adversas, mesmo na relação homossexual do livro, nota-se muito a influência de Simmons na execução deste romance. E isso rouba-lhe algum brilhantismo. Aqui e ali, sente-se muito o decalque. Agora, suponhamos que eu nunca tivesse lido The Terror, suponhamos que iria de mente virgem para este livro. Vamos por aí!

A Fome acompanha a caravana Donner e o desastre que ficou conhecido para a História como Donner Party. No inicio do século XIX, após a independência dos Estados Unidos e aprovação da Constituição, assistiu-se a um processo de expansão para Oeste. Esta imigração foi incentivada pelo presidente George Washington, que queria obter vantagens económicas e políticas com a colonização da área.
Assim, diversas famílias lançaram-se numa viagem extenuante à procura de terrenos que lhes proporcionassem melhores condições de vida, até porque seriam oferecidas pelo governo a preços bastante acessíveis. A célebre Marcha Para Oeste ficou marcada pela viagem de noventa imigrantes com cerca de 500 carroças, em 1846, sob a batuta de duas famílias influentes em Springfield, os Donner e os Reed. Seguiram as diretivas deixadas pelo major Lansford Hastings, que alegava ter encontrado um atalho rumo à Califórnia. O resultado não podia ter sido mais caótico.

A História conta que as condições adversas dificultaram a progressão da caravana e as rixas internas acentuaram o inevitável desastre. Quando a fome atacou o grupo, os membros da caravana começaram a alimentar-se da carne dos seus mortos. Houve sobreviventes, pertencentes ao chamado grupo dos Sapatos de Neve, que acabaram por fazer parte das buscas do que seriam os membros retardatários da caravana. O que encontraram foram sinais evidentes de canibalismo.
“Existe um balanço muito harmonioso entre as personagens masculinas e femininas, todas elas carismáticas e poderosas, mesmo que afetadas pelos seus fantasmas pessoais.”
Alma Katsu pegou nesta história e permitiu-se a alguma imaginação para caracterizar a sua versão do facto, adicionando uma doença estranha que transforma os homens numa espécie de monstros esfomeados, uma espécie de zombies possuídos por almas esfomeadas dos infernos. Nota-se um grande trabalho de pesquisa por parte da autora, mas acho que a sua mais-valia está nas liberdades narrativas a que ela se permitiu.

Existe um balanço muito harmonioso entre as personagens masculinas e femininas, todas elas carismáticas e poderosas, mesmo que afetadas pelos seus fantasmas pessoais. São todas fantásticas na sua construção e entrosamento. Os membros da caravana Donner são muitos e quase todos têm capítulos do ponto de vista, mas mesmo assim conseguimos sentir um envolvimento muito grande com eles.
Para mim é importante durante a leitura sentir que as personagens têm um passado, que têm sumo, que são credíveis. E mesmo com as liberdades criativas da autora, dá para perceber que estamos perante pessoas de carne e osso. De facto, apesar dos inevitáveis paralelismos, é um livro muito bom. Há uma qualidade notória na escrita de Alma Katsu, que transmite a dor e a desolação das personagens ao longo do volume. Leiam este livro; Tamsen Donner é muito amor.
Este livro foi cedido em parceria com a editora Saída de Emergência.
Avaliação: 8/10
Oie,
Não é “O Terror” do Simmons mas gostei de ler este livro, valeu bem a pena.
Abraço e bom ano
Fiacha
Grande abraço e bom ano companheiro.
Sublinho.