Estava na cama, de cortinados corridos, sem saber o que sentia. A merda triste no jogo que parecia Londres, Conner e a Tarântula no parque de estacionamento do Jimmy’s, Burton a contar-lhe da Coldiron, de alguém contratado para o matar por causa do que ela vira, depois chegar a casa e ao seu batalhão de outros veteranos.
O TEXTO SEGUINTE ABORDA O LIVRO O PERIFÉRICO
William Gibson é um dos autores mais importantes da ficção científica, chamado por muitos como o pai do cyberpunk. Das suas obras fazem parte contos, romances e artigos em várias publicações, tendo colaborado com vários artistas, músicos e realizadores de cinema. A sua obra de culto Neuromancer venceu os prémios Hugo, Phillip K. Dick e Nebula, sendo também inspiração para toda a ficção científica e para obras como a trilogia cinematográfica Matrix ou o mangá Ghost in the Shell.
The Peripheral é um dos mais recentes livros do autor, publicado em 2014. O livro tem já os direitos vendidos para uma série de televisão da Amazon, que será desenvolvida pelos mesmos criadores de Westworld Lisa Joy e Jonathan Nolan. Em Portugal, o livro foi traduzido pela Saída de Emergência com o título O Periférico, numa edição com 462 páginas e tradução de Luís Santos.
Ficção científica ao mais alto nível!

É um prazer ver William Gibson no catálogo da Coleção Bang! Nunca tinha lido nada do autor norte-americano, mas a sua influência sobre o mundo geek é de tal forma impressionante que é difícil nunca ter ouvido falar no seu nome ou no legado que tem deixado nos vários subgéneros da ficção científica, nomeadamente no cyberpunk, o qual fundou. O Periférico é um livro que vem ao encontro das expectativas dos leitores, uma ode à ficção científica e ao thriller futurista.
“O Periférico é a prova física de que a imaginação de William Gibson não se esgota e não deu já o que tinha a dar.”
O mundo apresentado será familiar para os fãs mais clássicos de Blade Runner, um mundo com tantos termos técnicos e computacionais que será difícil para alguém que não esteja familiarizado não se perder na leitura. De facto, apesar de já ter lido qualquer coisa de cyberpunk, o princípio deste livro foi um senhor quebra-cabeças. Ao leitor não é apresentado o mundo nem as personagens, e é através do seu quotidiano bizarro que tem de ir depreendendo quem são, do que estão eles a falar e que raio de mecanismos inusitados são aqueles que fazem parte da sua vida.

E eu adoro este tipo de livros que nos desafiam, que nos convidam a aprender por nós próprios o que está a acontecer, a juntar as peças. Mas o início foi tão bizarro, tão confuso, tão complexo, que me perdi completamente e senti-me pouco instruído no género para ler um livro destes. Felizmente as coisas não demoraram a mudar e fiquei bastante feliz ao começar a compreender a história e o mundo apresentado. O Periférico é um livro complexo, mas de qualidade.
E que senhora qualidade. Estamos perante um livro cyberpunk, sim, com maquinetas super-evoluídas, computadores embutidos nos corpos, andróides que servem para albergar pessoas que se encontram em outros tempos / espaços, tocos, cópteros e pequenas criaturas assassinas, estamos perante um thriller, um homicídio sem resposta que é preciso resolver, mas também estamos perante uma obra visionária, mais uma do incrível Gibson.

O livro alterna entre dois espaços temporais, o de Flynne Fisher e o de Wilf Netherton, sendo que o segundo apresenta já traços marcantes da extinção lenta a que o nosso planeta foi sujeito, por conta da poluição e da política global, à qual apenas os poderosos ficaram imunes. No primeiro, Flynne vive com o irmão Burton, vítima de stress pós-traumático da guerra que faz uns biscates como vigia em jogos de computador ultrarrealistas.
“E que senhora qualidade.”
Um dia, nesse período uns trinta anos à frente do nosso, Burton pede-lhe ajuda para que ela participe num dos jogos, no seu lugar. E durante essa experiência, Flynne depara-se com a cena de um homicídio, em que da vítima apenas sobrou a roupa. Até aí, tudo bem! Trata-se apenas de um jogo. Mas… e se não for só um jogo? Por alguma razão, ela começa a receber mensagens que a instigam a contar o que viu. Por alguma razão, alguém a quer matar.

Gibson é conhecido por mostrar uma versão romantizada dos hackers, e é esse o papel de Flynne. Uma jovem que se vê arrastada para o turbilhão político de um futuro que não vai mais existir. Uma jovem que viu o que não devia ter visto. E é possível arruinar um sistema financeiro para a calar. É aqui que entra Netherton. Wilf Netherton vive numa sociedade em que os periféricos, avatares a que os utilizadores se podem ligar, são comuns.
E é através de um deles que, com a ajuda de um grupo de amigos, composto por Lev, Ossian e a bizarra Maria Ash, Netherton traz Flynne para o seu mundo. Para a proteger. Para se proteger. A vítima do homicídio que Flynne testemunhou era, nada mais nada menos do que Aelita, irmã de Daedra, a mulher por quem Netherton estava interessado. No epicentro de tudo, está uma organização chamada Milagros Coldiron e os interesses coorporativos de uma oligarquia capaz de qualquer coisa para sobreviver.

O Periférico é a prova física de que a imaginação de William Gibson não se esgota e não deu já o que tinha a dar. Como primeiro livro dele que leio, não foi uma leitura fácil mas ainda assim extremamente proveitosa, tanto a nível cultural como de entretenimento. Gosto bastante de thrillers de ficção científica e este livro faz jus ao melhor que já li dentro do género, para além de oferecer também uma crítica veemente e justificada.
Depois deste livro, só espero que a Saída de Emergência venha a publicar Agency, o livro do autor que sairá em setembro, ou quiçá republicar Neuromancer, a obra-prima do autor de cuja publicação nacional não há qualquer rasto. Ler William Gibson é ler o melhor da ficção científica, o percursor do cyberpunk e o visionário dos reality-shows, o homem a quem devemos termos como matrix ou ciberespaço. E que não pára de se reinventar.
Este livro foi cedido em parceria com a editora Saída de Emergência.
Avaliação: 8/10
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