Estive a Ler: As Nuvens de Hamburgo


Olho-o nos olhos, decidida a enfrentá-lo. O que vejo deixa-me sem pingo de sangue. Estaco, incapaz de poder sequer falar. Abro e fecho a boca como um peixe fora de água.

O texto seguinte pode conter spoilers do livro As Nuvens de Hamburgo

Publicado pela Flybooks, As Nuvens de Hamburgo é o novo trabalho de Pedro Cipriano, um dos grandes entusiastas da Ficção Especulativa em Portugal, a que dá voz através da editora que fundou – a Editorial Divergência. Depois de trabalhar na Alemanha durante anos, como cientista ligado ao CERN, o autor teve a ideia de criar um romance que ligasse o presente ao passado da cidade de Hamburgo, cidade cuja História, pessoas e locais conheceu bem de perto.

Assim nasceu As Nuvens de Hamburgo, um romance intemporal sobre culturas, pessoas e viagens no tempo, lançado no passado dia 18 de junho na Biblioteca Municipal de Vagos. No último domingo, 16 de julho, decorreu a apresentação do livro no Auditório 1 do Instituto Superior Técnico de Lisboa, apontamento inserido na convenção de ficção científica Sci-Fi Lx.

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Apresentação do livro no Sci-Fi Lx

Uma rapariga normal…

Marta é uma rapariga normal. Ou deveria sê-lo. Os conflitos com os pais não parecem ser de agora, mas se não tiveram influência na decisão de ir estudar para o estrangeiro, seguramente tal empreendimento veio agudizar o relacionamento conflituoso entre eles. A estudar Erasmus em Hamburgo, Marta tem aquilo a que se pode chamar de uma vida normal. Até um dia.

Recém-chegada à cidade, o seu círculo de amigos não é muito grande, como seria de esperar, focando-se essencialmente em Eleni, uma beldade grega, e em Miguel e Jose, dois estudantes espanhóis. Enquanto é visada pelas atenções de Miguel, Eleni parece mais virada para Jose, que lhe é um pouco mais indiferente. Marta sente-se profundamente grata em estar fora desse triângulo amoroso, divertindo-se com a situação. Para Marta, as relações amorosas não estão, definitivamente, nos seus planos. É um espírito livre, sem paciência para amarras ou cobranças. Sem dúvida que um namorado lhe iria roubar tempo para os jogos de computador.

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Vista de Hamburgo (Fonte: wykop.pl)

… ou talvez não

É neste contexto que Marta é surpreendida, uma e outra vez, por visões estranhíssimas. Ao aproximar-se de monumentos que marcaram a História da Alemanha nazi, a rapariga avista suásticas, marcas da Segunda Grande Guerra e até militares fardados à época. O que inicialmente lhe parece uma confusão ou até uma encenação qualquer, rapidamente se transforma numa verdade inquietante. Marta é transportada para o passado, para os anos dolorosos da Segunda Guerra Mundial, e não consegue descobrir como ou porquê.

Os “transportes” têm, por norma, uma duração curta e surgem espaçadamente, sem um padrão inteligível. Ainda assim, começa a achar que está a ficar louca e é obrigada a contar a verdade à sua amiga Eleni. De cada vez que é transportada para o passado, Marta vê o mesmo rosto, o rosto de um oficial alemão que devia estar há muito morto. As coisas começam realmente a complicar-se para Marta quando, na visita a um monumento icónico de Hamburgo, um caça britânico desce dos céus e aponta-lhe a mira.

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Capa Flybooks
SINOPSE:

Marta é uma jovem que consegue ver o passado.
Assim que chega a Hamburgo, como estudante de Erasmus, vê-se transportada para a época Nazi, onde testemunha as brutalidades do Holocausto.
Nas suas viagens, Marta é atraída para um jovem soldado, encontrando-o nos recantos mais sombrios da história da cidade. A frequência dos encontros leva-a a procurar no presente a sua identidade.
O que é que os une? Apercebendo-se que consegue interagir com o passado, Marta procura descobrir qual o propósito deste dom. Mas será ela um mero peão num jogo que não consegue controlar ou será capaz de alterar o passado?


Um romance apaixonante, passado sob o manto da Segunda Guerra Mundial, que não irá deixar ninguém indiferente.

OPINIÃO:

Fui para o Sci-Fi Lx já com a ideia de comprar o livro do Pedro e com mais vontade fiquei de o ler após a apresentação do mesmo. O Pedro Cipriano não precisa de grandes argumentos para “vender o peixe” dele, basta olhar para a forma carinhosa com que ele trata a ficção e o trabalho que nela deposita. Também foi notório, pelo menos para mim, os sentimentos que tem em relação à cidade onde viveu e o quão bem a conhece. O anúncio de um equilíbrio entre História e Ficção Especulativa não me deixou grande hipóteses de fugir ao repto. Li As Nuvens de Hamburgo na viagem de regresso a casa.

Em relação à escrita, pouco há a dizer. Fluída e dinâmica, a escrita do Pedro não revela grande riqueza de vocabulário, mas pouco se dá por ela e isso é agradável. Se tenho algo a apontar, talvez o excesso de frases muito curtas, especialmente na ponta inicial do livro. Somos atirados para As Nuvens de Hamburgo já a “viagem” começou. O ritmo é altíssimo e assim se mantém ao longo das 97 páginas do livro. Se, ao início, isso pode gerar alguma confusão ou estranheza, posso dizer que agradou-me. O autor foi direito ao búsilis da questão e não desiludiu.

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Capa, contracapa e orelhas (Fonte: pedrocipriano.wordpress.com)

Confesso, na fase inicial do livro tive dificuldade em olhar para a Marta como a Marta. A narração é em primeira pessoa, e não conseguia desligar o personagem principal do autor, sobretudo sabendo que ele viveu ali. Pouco a pouco, no entanto, sobretudo pelas nuances e história pessoal da protagonista, fui dando traços e feições à rapariga. Se o início do livro já me tinha agarrado, o remanescente foi sempre a melhorar.

Pode-se até dizer que este livro é demasiado pequeno, mas parece-me que tem o tamanho certo para aquilo que o Pedro se propôs a contar, o tamanho certo para o tipo de escrita dele e o tamanho certo para passarmos uma hora e meia de bom entretenimento. Se o livro As Primeiras Quinze Vidas de Harry August reduzisse algumas das suas muito bem escritas viagens no tempo, talvez o tivesse colocado nos píncaros da FC. Não que o volume de páginas retire qualidade ao livro, mas neste tema em específico parece-me que o bater demasiado na mesma tecla e o repetir de situações cansa o leitor.

“Somos atirados para As Nuvens de Hamburgo já a “viagem” começou. O ritmo é altíssimo e assim se mantém ao longo das 97 páginas do livro.”

A história pode não parecer muito original, mas acaba por conseguir fugir a uma série de clichés expectáveis, pelo menos na minha ótica. Não precisamos de explicações, científicas ou de outro género, sobre o que aconteceu à Marta, não precisamos de respostas mais elucidativas. Tanto o autor como a crítica, por norma, sentem necessidade de ver respostas concretas para avalizar a competência na execução do plot, para perceber se não escreveu aquilo às três pancadas e só porque sim, mas na prática é o mistério que deixa o leitor apaixonado. E este As Nuvens de Hamburgo, pequenino e ainda com pouca visibilidade, é testemunha de que os autores nacionais têm muito para dar ao mundo das letras, independentemente do género.

Avaliação: 7/10


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Uma resposta para “Estive a Ler: As Nuvens de Hamburgo”.

  1. […] a ser melhorado num próximo volume. Num outro patamar de qualidade está o livro de Pedro Cipriano, As Nuvens de Hamburgo, publicado pela Flybooks. O autor faz-nos vestir a pele de Marta, uma estudante de Erasmus em […]

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