Espada que Sangra e a Construção de Mundos


Desde que lancei a nova versão do Espada que Sangra por várias vezes falei sobre construção de mundos e acima de tudo sobre a construção do meu mundo fantástico. É irrelevante e até ridículo dizer que a Terra Média de J. R. R. Tolkien não teve influência, porque todo e qualquer mundo de fantasia tem qualquer coisa de Terra Média. Os RPGs têm muito de Terra Média, os livros de George R. R. Martin, Patrick Rothfuss ou Brandon Sanderson têm muito de Terra Média, bem como possuem elementos de Michael Moorcock, Robert E. Howard ou Fritz Leiber. Podemos é não ser capazes de distinguir essas raízes, muito porque eles se inspiraram naquele que se inspirou no outro que se inspirou no outro. As semelhanças vão-se perdendo, mas é dificílimo um autor de fantasia desligar-se diligentemente de Tolkien com toda a segurança. Ainda para mais para a geração que rejubilou com as adaptações de Peter Jackson ao cinema no início do século.

Terra Parda, uma das amplas nações em que ocorre o meu livro, é também o nome de uma região da Terra Média de Tolkien, em boa verdade pouco abordada na trilogia mais famosa do autor. Esta acabou por ser uma coincidência inconsciente, mas que não tem sequer grande interesse para a história. Sim, fui um dos que vibraram nas salas de cinema com O Senhor dos Anéis há quase vinte anos atrás, e seria muito obtuso da minha parte negar a sua quota-parte de inspiração naquilo que eu tenha escrito. Coleccionei figuras, jogos e até enciclopédias sobre a série, e nem sei bem porque perdi o entusiasmo. Porque não gostei tanto dos livros como esperava? Talvez.

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Ainda assim, não vou negar que no meu subconsciente trabalham cenas como a da Batalha do Abismo do Elmo ou o Cerco a Minas Tirith quando descrevo os cercos mahlan às muralhas da Liga Parda. Os efeitos visuais que Peter Jackson produziu na sua trilogia cinematográfica acabaram por ficar na retina dos autores da minha geração. As constantes reproduções e linhagens literárias a homenagear Tolkien, a falar de elfos, anões e orcs, porém, acabaram por ultrapassar as linhas da exaustão. Separei-me do mundo da fantasia com a ideia de que seria incapaz de escrever algo que um outro autor não tivesse já escrito.

E mesmo a fantasia tolkieniana começou a vir associada a um padrão mais juvenil, apesar da trilogia O Senhor dos Anéis ser destinada ao público adulto. Com isso, perdi um bocado o interesse pela fantasia. O que é que mudou? Bem, se hoje podem pegar no Espada que Sangra, é porque a série de TV Game of Thrones se popularizou por todo o mundo. Mais uma série de fantasia protagonizada por miúdos? Falem a sério. Disse eu quando no ano de 2011 me levaram a vê-la. E vi. E comecei por não gostar, até começar a perceber que aquilo era muito mais do que podia imaginar.

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Podem julgar que me estou a afastar do tema do tópico, mas a construção do meu mundo deveu-se muito a esta experiência televisiva. Os mass media têm realmente uma importância descomunal na introdução de novos olhares e na conversão de paradigmas. Entrei no hype da série Game of Thrones e comecei a escrever o Espada que Sangra. O que mais me maravilhava na série era a forma como era uma fantasia extremamente credível, um mundo medieval construído do zero. E essa construção do zero, plausível, conquistou-me.

Quando mais jovem, garatujei uma fantasia, bastante fraca a nível de escrita, que era uma epopeia à Senhor dos Anéis com personagens inspirados no meu anime de eleição, a minha paixão de adolescência, Dragon Ball. A ideia que eu tive passava por introduzir essas personagens num mundo de raiz, criado por mim. Mundo esse que seria tão inspirado na Antiguidade Clássica como o Game of Thrones era inspirado na Inglaterra medieval.

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Escusado será dizer que era necessária alguma pesquisa a fundo. Essa pesquisa pode não ser perceptível de pronto a quem ler o livro, mas acredito que a minha criação não revelaria o entrosamento que lhe é reconhecido se essa pesquisa não existisse. Zallar, o mundo em que se passa Espada que Sangra, deve muito às minhas pesquisas sobre as civilizações greco-romanas, egípcias, meso-americanas e babilónicas. Não foram pesquisas de meses, mas fruto da minha curiosidade de anos sobre tais temáticas. O que me levou ao passo seguinte.

Sabia o que fazer, mas como? Precisava saber o que outros autores tinham feito, como tinham feito, para usar a mesma fórmula. Foi então que me decidi a ler os livros que haviam sido adaptados para a série Game of Thrones, as Crónicas de Gelo e Fogo de George R. R. Martin. E, ao contrário do que havia acontecido com Tolkien, gostei ainda mais dos livros do que da adaptação. E compreendi mais ou menos o que havia de fazer para construir o meu mundo. Depois, veio tudo a pulso. E um bocado a olho.

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Os primeiros esboços de Zallar agradaram-me no momento, não me agradaram depois e hoje então considero-os como detritos do meu trabalho. Demorei a conseguir desenvolver um mundo que considerasse verosímil. Demorei a conseguir desenvolver um mundo que não parecesse um decalque de Westeros & Essos ou com exatamente as mesmas características do nosso mundo antigo. Nessa hesitação, optei por decalcar o nosso mundo antigo, com origens mais fantasiosas que foram mais disfarçadas nesta nova versão do livro. Acrescentei-lhe pormenores diferentes, como é exemplo o uso de armas de fogo.

A formação dos continentes, dos mares e do oceano foi uma tarefa mais vasta. Zallar começou com uma conjectura bem diferente da que lhe conhecemos hoje, mas foi-se adaptando de acordo com as minhas necessidades narrativas. Também sofri um pouco quando tentei aglutinar mais do que uma cultura (real) numa mesma civilização (no livro), porque várias questões entravam em conflito. Mas, por exemplo, consegui criar um povo que lembra os elfos tolkienianos com uma fisionomia e cultura bem semelhante à dos egípcios e dos núbios do nosso mundo.

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Um truque que usei bastante para não me perder foi tratar civilização a civilização, o que usei ao longo dos cinco livros da série, cujo processo de escrita terminei em 2016. No primeiro livro foquei-me nas nações terrapardianas, que desenvolvi no segundo, ao mesmo tempo que ia abrindo espaço, nas viagens das personagens, a apresentar outras civilizações, com especial destaque para as Terras Altas no terceiro volume e Terras Quentes no quarto e quinto volumes.

Fui vítima também do medo que senti do preconceito alheio em relação ao Dragon Ball. Hoje vejo (e adoro) o anime mas reconheço um humor e um ridículo nele que nada tem a ver com o Espada que Sangra. Daí ter ocultado por uns bons tempos a sua inspiração. Quando saiu esta versão de 2018, decidi ser sincero. Eles podem ser toscos e mal-humorados, mas Adilar é um Coraçãozinho de Satã transformado em “egípcio”, Tyttertop e Tazz versões de fantasia do Trunks, na sua forma futura e presente, Hymadher uma visão amarga e cobarde de Son Goku. Como exemplos.

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Na construção de mundos também devemos ter atenção aos perfis das personagens que queremos apresentar. Brandon Sanderson apresenta um mundo críptico na primeira trilogia Mistborn, mas aparte a sua tragédia e índole narrativa a série apresenta um tom doce e uma aura Disney, pelo que a inspiração no Japão da Era Sengoku, Europa renascentista ou, vá, pré-industrial, acaba por fazer muito mais sentido e fazer mais sucesso do que uma marcadamente medieval.

Ou não. A verdade é que muito depende da abordagem do autor aos temas e à forma como faz ginástica entre o plot e o mundo criado. Robin Hobb, por exemplo, optou por utilizar uma fórmula mais gasta e preguiçosa, e explorar temas mais do que batidos como a sociedade feudal e as magias tradicionais, dando-lhes pormenores que acabam por a distanciar de tudo o que já foi feito. A sua escrita envolvente basta-lhe para criar uma trilogia de renome, e o que ela faz a partir da segunda trilogia tem três nomes: inteligência, carisma e pureza. Hobb desenvolve relações e toca nas emoções dos leitores como nenhum outro autor de fantasia o consegue fazer.

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Sanderson e Hobb são dois exemplos de autores contemporâneos que não podiam ser mais diferentes tanto na construção de mundos como de enredos. O primeiro oferece ritmo, quebra-cabeças e volte-faces. A segunda oferece cuidado, experiência e amor. Em comum têm a abordagem à magia. E uma criação de mundo gradual. Outros autores revelam diferentes abordagens mas semelhante inteligência nas suas construções, como Steven Erikson, Scott Lynch, Patrick Rothfuss ou Andrzej Sapkowski. Os seus mundos são construídos de dentro para fora. E essa é uma das suas grandes virtudes.

Foi essa construção de dentro para fora que eu quis revelar no Espada que Sangra, pelo menos na sua nova versão, com uma bagagem de fantasia bem maior do que aquela que tinha quando escrevi a primeira. Mas em boa verdade, a minha falta de bagagem em fantasia permitiu-me construir um mundo mais realista, com pouquíssimos sinais de magia que é, na verdade, a grande mais-valia desta obra, em que o foco está na estratégia militar e na intriga política. Se quiserem detectar deficiências ou qualidades na construção de Zallar, espero que não hesitem em pegar num exemplar e em partilhar comigo o vosso parecer.


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Uma resposta para “Espada que Sangra e a Construção de Mundos”.

  1. Avatar de TBM dezembro 2018 – Notícias de Zallar

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