O texto seguinte pode conter spoilers do livro “As Mentiras de Locke Lamora”, primeiro volume da série The Gentleman Bastards.
Se há autores que sabem barrar o seu bolo com uma deliciosa cobertura de “tudo-o-que-podemos-desejar”, este Scott Lynch é um deles. Natural do Wisconsin, o jovem bombeiro da região saltou para o estrelato logo com o seu romance de estreia, um surpreendente jogo de ladrões que mistura ambientes que nos são de algum modo familiares numa intricada teia de intrigas e trapaças.
Lançado em 2006, As Mentiras de Locke Lamora é o primeiro volume de uma série de sete, The Gentleman Bastards, sendo que apenas três foram publicados pelo escritor e não se prevê que mais algum para além deste seja lançado em Portugal. Se este livro me surpreendeu? Sem a mínima dúvida. Scott tornou-se um dos meus autores de eleição.
Camorr é uma cidade costeira inspirada na Veneza renascentista. A maioria das construções têm fragmentos de uma matéria chamada “vidrantigo”, remanescente da civilização alienígena que fundou aquele mundo – os Ancestres.
Locke Lamora é uma criança vendida pelo Criador de Ladrões a Chains, um sacerdote pouco convencional. Afinal, este homem faz coleção de pequenos espiões na cave do seu templo, onde os treina na arte da ladroagem. Pouco a pouco vamos conhecendo estes jovens gatunos, e a ação avança para a atualidade, onde a trupe se auto-governa como um bando organizado: os Cavalheiros Bastardos.
Pequeno e franzino, Locke revela-se o mais astuto e desenrascado – existe a referência a Sabetha como superior em esperteza, mas a única rapariga da trupe (e o grande amor da vida de Locke) desapareceu por algum motivo. Calo e Galdo são um par de gémeos extrovertidos e tagarelas, que protagonizam os momentos mais divertidos da história. Sempre com um par de machados, Jean Tannen é o mais gordinho e a força de braços do grupo, mas também o melhor amigo de Locke. Pulga, por sua vez, é um pequeno aprendiz de espírito vivo.
As Mentiras de Locke Lamora apresenta este grupo e as suas artes de sabotagem e engano. Recorrendo aos esquemas mais astuciosos, os Cavalheiros Bastardos planeiam encher os bolsos à custa de um casal abastado, os Salvara, mas em menos de nada vêm-se envolvidos no mundo do crime e usados como peões numa guerra pelo controlo do submundo camorri.
De um lado, Capa Barsavi, o homem mais poderoso de Camorr e patrocinador das melhores festas e lutas de tubarões (onde as irmãs-gémeas Berangias lutam como gladiadoras). Do outro, o Rei Cinzento, uma figura misteriosa que vem aterrorizando a população e deseja tornar-se o novo Capa. Ao seu lado, tem o Falcoeiro, um terrível mago-servidor de Kartane, e o seu falcão Vestris. Vingativo e detentor de múltiplos recursos, o Rei Cinzento usar-se-á de Locke para controlar Camorr, mas o submundo tem muitos mais esquemas cruzados, e Locke Lamora tem um grupo de amigos para lhe valer.
Está difícil para todos, mas o protagonista é quem mais se pode queixar. Primeiro é arrastado para uma falsa acusação – como ninguém o conhece pessoalmente, Cinzento faz com que Barsavi julgue ser Locke o terrível criminoso, colocando a sua vida em grande perigo, uma vez que o Rei Cinzento tinha morto Nazca, a filha do Capa, colocando ao rubro o seu sentido de vingança.
Entre ser arremessado de dentro de um barril de urina para o leito do rio e ver alguns amigos mortos, Locke leva o seu instinto de sobrevivência ao limite. Enfrentando tudo e todos, usa-se dos recursos mais inimagináveis possíveis para parar os sujeitos mais inquietantes que já apareceram por Camorr, corroído pelo sentimento de vingança e por uma ousadia que extrapola os limites do bom-senso. Locke parece ter mais vidas que um gato. É hilariante e é arrojado. Arrancar a língua a um feiticeiro e esmurrar uma velhota são exemplos disso mesmo.
SINOPSE:
Diz-se que o Espinho de Camorr é um espadachim imbatível, um ladrão mestre, um amigo dos pobres, um fantasma que atravessa paredes. De constituição franzina e quase incapaz de pegar numa espada, Locke Lamora é, para mal dos seus pecados, o afamado Espinho. As suas melhores armas são a inteligência e manha à sua disposição. E embora seja verdade que Locke roube dos ricos (quem mais vale a pena roubar?), os pobres nunca vêem um tostão. Todos os ganhos destinam-se apenas a ele e ao seu bando de ladrões: os Cavalheiros Bastardos. O submundo caprichoso e colorido da antiga cidade de Camorr é o único lar que o bando conhece. Mas tudo vai mudar: uma guerra clandestina ameaça destruir a própria cidade e os jovens são lançados num jogo de assassinos e traidores onde terão de lutar desesperadamente pelas suas vidas. Será que, desta vez, as mentiras de Locke Lamora serão suficientes?
OPINIÃO:
Magistral, soberbo, original… Parece que todos os adjectivos são poucos para qualificar esta obra magnífica. Comecei o livro com baixíssimas expectativas. A sinopse não me puxou, nunca fui fã dos ambientes renascentistas e Veneza não era dos meus destinos turísticos predilectos. Surpreendendo-me a mim mesmo, gostei dos capítulos iniciais, e fui lendo, um pouco na expectativa, as histórias de Locke, Jean, Calo, Galdo e Pulga. Senti-me algo confuso com o mundo em que estes personagens se inseriam, e interiorizei que era um mundo original baseado na Veneza antiga, só e apenas, sem esperar que Scott viesse a caracterizar mais pormenorizadamente esse mundo. Mas, para meu espanto, ele fê-lo.
O autor foi pintando esse mundo gradualmente, dando-nos a conhecer a sua notável arquitectura majestosa e as suas ciências de carácter alquímico. Só conhecemos a mitologia e a História daquela terra, pelo menos em parte, no decorrer dos capítulos. Um deles, extremamente divertido, oferece-nos uma versão peculiar de um desporto moderno.
Durante muito tempo estamos a ouvir falar de deuses, de idiomas e de terras das quais nada conhecemos, o que, se por um lado nos dá vontade de conhecer mais, por outro, ficamos completamente a “apanhar bonés”. Scott, no entanto, não nos deixa desistir da leitura. Os locais são muito bem descritos, as trapaças dos nossos heróis bem organizadas e aquele que, para mim, é o ponto forte do escritor, o seu sentido de humor é qualquer coisa de magnífico.
A sua mente criativa misturou com consistência e sustentabilidade um mundo de mafiosos e ladrões, com poucos personagens é certo, mas todos eles muito bem desenvolvidos e trabalhados. Se o mundo em si ainda não é muito complexo, a rotina e os modos de vida de Camorr são qualquer coisa de apaixonante, concebendo uma textura tão palpável que nos faz sentir dentro daquela história. E as reviravoltas que o autor nos dá, a morte de certos personagens (o tão célebre Capítulo 10), a revelação de esquemas e as ironias deixam-nos, irrefutavelmente, a salivar por mais.
O meu personagem preferido é Jean Tannen, e as minhas cenas preferidas são aquelas em que ele age com as suas Irmãs Malvadas, as suas machadinhas inseparáveis. O Rei Cinzento, Capa Barsavi, Dona Vorchenza e o Falcoeiro são também personagens fantásticos, para além, claro, do protagonista, Locke Lamora. Também adorei os tubarões e as lutas de gladiadores na água. Sim, há lutas com tubarões para divertimento do povo. E se a magia é muito escassa neste mundo de Scott Lynch… bem, ele conseguiu fazer com que o lingrinhas do Locke se fosse meter mesmo com as pessoas mais erradas possíveis.
Como tal, pontuei este menino com 5 estrelas no Goodreads, e tornou-se o meu preferido no mundo da fantasia. Ainda assim, há alguns pontos que roubam a perfeição ao livro. Não há obras perfeitas, mesmo no caso de uma obra tão consensual como As Mentiras de Locke Lamora. Para um sujeito tão franzino como Locke Lamora – o facto foi muitas vezes realçado por Scott ao longo do texto – achei muito pouco plausível que, na hora de procurar um fato que lhe servisse, toda a gente tivesse o mesmo tamanho e constituição do rapaz.
O final soou-me um bocadinho previsível, e de certo modo um dejá vu de alguns filmes de aventura. Ainda assim, fica a minha máxima recomendação. As Mentiras de Locke Lamora é um livro fantástico. Todas as pontas são bem atadas, todas as histórias muito bem explicadas, uma descrição realista sem ser maçadora e um diálogo quase permanente, consistente e engraçado, alternando entre comédia e drama no timing certo.
É verdade que o livro já saiu há algum tempinho, mas só agora tive oportunidade de o ler, graças ao amigo Fiacha. Tenho pena que não tenham ideias de publicar em breve outros livros de Scott em Portugal, mas acho que vão correr a publicá-lo mal façam um filme do Lamora, infelizmente sem esse tipo de publicidade grandes obras de arte passam ao lado da maior fatia do público.
Avaliação: 10/10
The Gentleman Bastards
#1 As Mentiras de Locke Lamora (Saída de Emergência)
#2 Mares de Sangue (Arqueiro)
#3 República de Ladrões (Arqueiro)
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